A Casa Dividida
Nenhuma das quatro garotas sabia cuidar de uma casa.
Apesar das situações econômicas diferentes, todas estavam acostumadas a segurarem na mão dos pais. Nunca haviam precisado lavar um banheiro ou esfregar o chão de uma cozinha.
Foi por isso que Lulu passou meses achando que o mofo acumulado na parede do seu quarto era por falta de limpeza e não por conta de uma infiltração.
Só percebeu o problema quando o pai de uma das garotas fez uma visita e lhe explicou a situação. Horrorizada, sem nem entender direito o que era uma infiltração, chamou um pedreiro para arrumar o reboco no dia seguinte.
Nunca havia precisado chamar um pedreiro antes; seus pais sempre lidaram com todos os problemas domésticos. Sua mãe jamais se dava ao trabalho de aprender os nomes de trabalhadores informais, apenas se referindo a eles como “aquele” ou “aquela”.
Na hora de se despedir do pedreiro, Lulu percebeu que havia esquecido o seu nome. Passou a noite em claro, apavorada com a ideia de estar se tornando um reflexo da mãe.
Na manhã seguinte do serviço, ela entrou na cozinha, ainda de pijama, enquanto Flávia, Silvia e Bárbara, suas colegas de casa, tomavam café da manhã.
Silvia e Flávia estavam sentadas juntas enquanto Bárbara estava de pé, encostada na parede, observando-as sem, no entanto, entrar na conversa.
— O conserto da infiltração deu uns 800 reais — Lulu disse com cautela.
— Tudo isso? — perguntou Bárbara, arregalando os olhos.
Ao perceber a reação de Bárbara, Flávia fingiu surpresa, imitando a expressão da amiga, apesar de não ter ideia se isso realmente era um valor alto para um conserto.
Silvia desviou o olhar de seu lanche, levantando as sobrancelhas, sem prestar muita atenção na conversa.
Lulu aguarda algo a mais que nunca chega, encarando as três com expectativa.
— Vocês não conseguiriam me ajudar?
— Ih… — Silvia soltou, ignorando o olhar feio de Flávia. Olhou de relance para Bárbara, que estava com os olhos fixos no café. — Putz, Lu.
Apesar de ser estagiária, Silvia ganhava bem. Não era das melhores funcionárias, mas era excelente trambiqueira. Havia descoberto um podre da sua chefe que havia garantido não só sua efetivação futura, como uma graninha a mais fora da folha de salário.
Apesar disso, não sabia controlar seu dinheiro. O que ganhava em uma mão já estava sendo gasto na outra. Por isso, mesmo odiando não ter seu próprio espaço, morava com as outras garotas. Conhecia-se o suficiente para saber que nunca conseguiria pagar um aluguel sozinha.
Ao perceber que ninguém diria mais nada, Flávia se levantou, ficando ao lado de Lulu. Sentia-se um pouco culpada; era a única das meninas que não precisava dividir uma casa. Tinha um bom relacionamento com os pais e, quando se mudou para São Paulo, eles estavam dispostos a lhe sustentar. Mas Flávia quis pagar suas contas sozinha e dividir uma casa. Achou que seria uma experiência jovem, moderna, algo que a mudaria fundamentalmente como pessoa.
— Meninas, não seria legal se a gente ajudasse a Lulu? A casa está no nome dos pais dela e a gente não estaria aqui se não fosse por eles.
— É verdade — Lulu ergueu a postura. Agora que havia sido lembrada deste fato, sentia-se mais confiante.
Bárbara e Silvia se entreolharam antes de fitar Flávia novamente. Não eram próximas, mas ambas entenderam o olhar uma da outra: não quero pagar nada.
— Olha, sou muito grata por isso… — Bárbara começou, sua voz baixa. Ela não acreditava nas próprias palavras; não se importava muito em qual nome a casa estava. Afinal, todas pagavam o aluguel, e Bárbara sempre foi a única a nunca atrasar o pagamento. — Mas 200 reais é muita grana.
— Um pouco mais, na verdade — Lulu mordeu o lábio inferior, já prevendo a reação hostil das colegas. — É que eu não conseguiria pagar minha parte agora.
— Mas como você faz uma coisa dessas sem ter dinheiro? — Silvia também se levantou, já ficando irritada.
— E era para eu fazer o quê? — Lulu reclamou. — Viver no mofo? No fedor?
Silvia gostava de Lulu; na verdade, a única colega de casa com quem não simpatizava era Bárbara. Mesmo assim, não conseguia sentir pena dela. Sempre odiou dividir o espaço, forçar intimidade, dar bom dia de manhã, e esse ódio acabava se tornando indiferença quanto aos problemas das colegas.
— Vocês sabem que não estou conseguindo achar emprego nenhum — Lulu tentou novamente. — Estou procurando feito uma louca, mas só recebo rejeição atrás de rejeição.
— Calma, Lu — Flávia acariciou o braço da amiga. — Gente, 200 reais não é tanta grana assim.
— É 15% do seu salário — Silvia rebateu. — Nem você consegue pagar isso.
Bárbara pensa, de modo meio distraído, que Silvia é boa de matemática.
Ao perceber que talvez houvesse magoado Flávia, Silvia se aproxima, colocando a mão no seu queixo e lhe dando um selinho. Após o beijo, olha para Bárbara, que só desvia o olhar, envergonhada.
— Para você, não é tanto dinheiro — Flávia tenta argumentar, apesar de não conseguir esconder seu sorriso bobo.
— Já gastei toda minha grana esse mês. — Chega a resposta não muito convincente.
— Mas você saiu pro bar ontem. Pagou por aquilo como?
— A… Quer dizer, meus amigos me ajudaram a pagar.
— Amigos. Que amigos?
— O Pedro.
— Foi ele que te deixou em casa? — interrompe Bárbara. — Vi um Fusca bem bonito ontem na porta.
De boazinha, essa aí só tem o rosto, pensa Silvia com raiva.
— Fusca? — Flávia passa as mãos pelo cabelo. — Você não falou que tinha voltado de metrô?
Silvia fecha os olhos e encosta a cabeça na parede.
— A Carol me deu carona. Mas sei que você não gosta dela, então não quis…
— Você mentiu pra mim! — Flávia pisca diversas vezes. Parece prestes a chorar. — Não ia ter feito isso se não tivesse motivo.
— Acabei de te dizer o motivo.
Flávia cruza os braços, ainda chateada.
Silvia olha de soslaio para Bárbara, que observa a briga em silêncio enquanto rói as unhas.
— Você está bem quietinha, né, Bárbara? — diz com uma pitada de maldade. — O que você acha?
— Já dei minha opinião.
— Minha única outra solução é pedir dinheiro para os meus pais — Lulu fala por cima de Bárbara, que fica grata pela interrupção. Tinha pavor a conflitos. — Vocês sabem que não dou me bem com eles.
Bárbara não responde, mas sua expressão deixa claro que não está particularmente preocupada com o drama familiar de Lulu.
A garota sempre lhe pareceu mimada. O nome da mãe de Bárbara era tão sujo que ela não conseguiria alugar nem uma bicicleta para a filha; nunca conseguiria entender como alguém poderia ter um relacionamento ruim com pais dispostos a ajudá-lo.
— Ai, meu Deus… O que posso fazer? — pergunta Flávia, sentindo a angústia tomar conta do seu corpo.
— Mas por que você está tomando as dores da Lulu? — reclama Silvia.— Está toda nervosa de graça.
— Não precisa falar assim com ela, Silvia — interrompe Bárbara. — Ela só está tentando ajudar.
— É, claro que você diria isso.
Isso faz Bárbara pausar, olhando para Silvia com olhos arregalados.
— Não entendi.
— Será que não entendeu mesmo?
— Ai, gente — geme Lulu, ignorando a interação entre as duas. — Vocês todas têm empregos. Sou a única que não consegue nada desde que se formou. Não consigo pagar por isso agora.
— Não tem emprego porque não quer — responde Silvia, sentindo o veneno escorrer antes mesmo de conseguir contê-lo.
Lulu a encara, sem entender.
— Perdeu o emprego porque transou com o chefe.
Flávia e Bárbara direcionam olhares horrorizados à Lulu; Flávia quer saber se isso é verdade, enquanto Bárbara se pergunta se é a única do grupo que está na seca.
— Você não tinha direito nenhum de mencionar isso!
— Você quer me forçar a pagar algo que não tem nada a ver comigo porque “não consegue arranjar emprego”. Mas perdeu o anterior por burrice.
— Não foi por burrice! Ele me prometeu… — Lulu desiste de terminar a frase, sentindo seu rosto ficar vermelho, e desvia o olhar de Silvia. Seus olhos chegam aos de Bárbara a tempo de vê-la tentando esconder uma risada.
— E você, Bárbara? Vai conseguir me ajudar?
A garota logo fica séria, fazendo não com a cabeça.
— Mando dinheiro pra minha mãe todo mês. Ela não consegue se sustentar sem mim.
— Você nunca tinha falado disso antes — reclama Lulu.
— Não gosto de falar dos meus problemas financeiros por aí — a resposta faz Lulu cerrar os olhos.
— Isso é algum tipo de indireta? Só porque meus pais alugaram a casa pra mim?
— Não era pra ser.
— Estou longe de ser rica.
— Tá bom.
— Lu, você realmente transou com seu chefe? — Flávia pergunta, ainda transtornada.
— É complicado. — Lulu desvia o olhar.
— Mas ele é casado!
— Ah, vai pagar de boa moça, Flávia? — Lulu começa a perder a paciência. — Logo você, que faz juras de amor para a Silvia, mas fica de gracinha com a Bárbara pela casa?
— Eu sabia! — ri Silvia com escárnio, quase como se não se importasse com a revelação. — E você querendo choramingar pela Carol.
— Não é verdade! — Flávia se defende com muito mais vigor do que necessário. — Nunca aconteceu nada, enquanto eu sei que você fica com a Carol. Bárbara, fala alguma coisa. Me defende.
Ao virar o rosto para Bárbara, Flávia se surpreende com o olhar de raiva direcionado a ela.
— Que foi?
— O que você acha? — apesar de manter o foco em Flávia, Bárbara consegue sentir o olhar irônico de Silvia, o que só a irrita mais. Solta um suspiro com a expressão confusa de Flávia. — Olha, eu vou para o meu quarto. A gente resolve isso depois.
— Bá, espera! — Flávia tenta ir atrás da garota, que bate o pé até seu quarto, mas Silvia a impede.
— Deixa ela.
— E agora? O que a gente vai fazer?
— Eu não vou fazer nada — resmunga Silvia. — Em algo concordo com aquela pobre coitada: não tenho nada a ver com isso.
— Não fala assim dela.
— Falo como eu quiser.
A discussão entre as duas continuou por uma hora. Depois, duas. Depois disso, um dia.
Eventualmente, passou de dias.
Intensificou-se a tal ponto que acabaram terminando um relacionamento que nunca foi muito bem definido.
Constrangida, Bárbara saiu da casa e voltou a morar com a mãe.
Lulu, teimosa, não falou com os pais e não pagou a dívida. Até hoje tem pesadelos com aquele pedreiro, temendo que algum dia ele descubra sua casa nova e vá lhe cobrar.
E a casa se esvaziou aos poucos até não conter mais ninguém.