A Casa Dividida

Era setembro, mês de aniversário de Bárbara. Os dias andavam secos e o sol parecia mais forte. Se a primavera estava para chegar, então o céu não havia sido avisado ainda.

A tragédia aconteceu em um desses dias secos. Uma carta do governo chegou na casa que Bárbara, Flavinha, Luluzinha e Silvia dividiam.

Como Flavinha era sempre a primeira a acordar, pois gostava de ouvir os pássaros cantando, foi quem recebeu a carta oficial, direcionada à residência, sem, porém, especificar alguém. Enquanto tomava seu café com leite sem açúcar, Flavinha leu as palavras com calma, mesmo quando seus olhos começaram a arregalar e sua mão direita quase derrubou sua caneca ao compreender o que estava escrito.

A residência estava sendo multada e deveria pagar 800 reais antes do fim do mês. O motivo? "Infração a direitos autorais". Alguém havia pirateado algo e, agora, a casa inteira deveria sofrer com as consequências.

Flavinha imaginou que isso talvez fosse um engano, ou alguma piada sem graça. Releu a carta, olhou as partes de frente e de trás, inspecionou o logo da firma de advocacia. Tudo parecia em ordem... mas, também, como saberia se não estivesse? Decidiu confiar em um velho amigo e jogou no Google se tal multa realmente existia. Desde quando as regras eram seguidas no Brasil? Para sua surpresa e consternação, as regras estavam começando a ser seguidas, sim; uma lei para fiscalizar melhor o consumo de materiais pirateados e endurecer as punições para tal atos havia entrado em vigor recentemente. Fechou os olhos, sentindo o vapor do café no seu nariz. Conseguia ouvir a voz da sua mãe dentro da cabeça. Que tipo de estudante de Jornalismo não acompanhava as notícias?

Assim que todas haviam acordado, Flavinha convocou uma reunião de casa. Mostrou a carta e pediu para quem tivesse pirateado o material falar a verdade. Ela se considerava uma pacifista; acreditou que isso demoraria, no máximo, 10 minutos até a culpada admitir o que havia acontecido, pedir perdão e assegurar todas que pagaria a multa.

Após a leitura da carta, porém, houve silêncio. As garotas se entreolhavam, desconfiadas, e então olhavam para Flavinha, como se dizendo "e agora?".

— Meninas, precisamos resolver isso — Flavinha tentou. — A casa está no nome dos pais da Luluzinha.

— É verdade — Luluzinha concordou, erguendo a postura e olhando para as suas outras colegas. Agora que havia sido lembrada deste fato, sentia-se mais confiante, como se isso a salvasse de qualquer desconfiança ou dúvida quanto a essa multa.

Bárbara e Silvia se entreolharam antes de olhar novamente para Flavinha e dar de ombros. Não eram particularmente próximas, mas ambas entenderam o olhar da outra: não fui eu.

Flavinha soltou um suspiro.

— Não é possível que ninguém tenha pirateado nada.

— E se foi um engano? — sugeriu Bárbara, sua voz baixa como sempre.

— Mas o que fazemos se tiver sido um engano? — Flavinha acenou com a cabeça, gostando da sugestão de Bárbara. Se tiver sido um erro, a situação seria mais tranquila e ela poderia aquietar seu estômago nervoso.

— Acho que eu teria que falar com meus pais — respondeu Luluzinha. — Eles teriam que fazer... alguma coisa. Provavelmente comprovar que ninguém aqui baixou nada. Não sei como a gente faria isso. — Ela pausou por um momento. — Pra ser sincera, preferiria não falar com eles.

Flavinha percebeu uma leve revirada de olhos de Bárbara, mas, como esta ficou quieta, decidiu fingir que não havia visto nada.

— Preciso me arrumar para o trabalho — disse Silvia após alguns momentos de silêncio, seus olhos nos de Flavinha.

— Eu também — acrescentou Bárbara.

— Depois a gente fala mais disso, então — Silvia encerrou a breve reunião com outro suspiro.

*

No fim do dia, todas haviam voltado para casa, com a exceção de Luluzinha, que não havia saído naquele dia. Havia passado a tarde inteira no computador, mandando currículos e verificando seu e-mail de forma obsessiva, sempre esperando uma resposta nova que nunca vinha.

Flavinha estava na cozinha, fazendo seu costumeiro chá do fim da tarde, quando sentiu duas mãos geladas nos seus ombros. Não precisava virar de costas ou perguntar para saber quem era; era Silvia.

— Você está tensa — ela disse, aproximando-se de Flavinha para lhe dar um beijo na bochecha, quase na sua orelha.

— Estou pensando naquela multa. Precisamos resolver isso logo.

— Deixa isso pra lá. Ficar se preocupando é pior.

A resposta irritou Flavinha. Tudo para ela sempre consistia em "deixar as coisas para lá", ou em "relaxar" com um beck. Flavinha não era contra esta filosofia (e era fã de um bom baseado), mas era ansiosa desde a infância. Comia suas unhas até ficarem em carne viva e destruía tecidos de roupas novas. Se ficar relaxada fosse uma opção, já teria a escolhido há muito tempo.

Silvia dá outro beijo na bochecha de Flavinha, querendo roubar uns beijinhos a mais, mas, ao ouvir o barulho da porta da cozinha abrindo, Flavinha afasta Silvia. Bárbara olha para as duas garotas abraçadas, seu olhar envergonhado, antes de fingir que nada viu e abrir a geladeira.

— A gente está falando daquela multa — Silvia diz.

— Hm — responde Bárbara sem muito entusiasmo. — É, eu falei disso com a Flavinha hoje.

— Ah, é. Eu esqueço que vocês estão sempre juntas — o tom de Silvia é estranhamente vordaz e, apesar de não entender o porquê, Flavinha ainda assim tenta apaziguá-la.

— É que trabalhamos no mesmo lugar, né. A-além do mais, a Bá entra umas duas horas antes de eu sair.

— É — diz Bárbara, fechando a geladeira com uma salada de fruta na mão e um mini sorriso nos seus lábios. Estava sempre sorrindo. Tinha um sorriso lindo; talvez fosse a única parte das suas feições que chamasse atenção.

— Você tem certeza que não foi você? — pergunta Silvia, ainda sentindo uma pontada de ciúmes. — Lembro de você mencionar que pirateia suas músicas.

— Falei disso com a Flavinha. Parei de piratear, voltei a usar o Spotify.

Silvia não acredita nela, só respondendo com um sorriso cínico.

É nesse momento que Luluzinha entra na cozinha, espremendo-se entre as outras três meninas para pegar algo da geladeira.

— Eu estava pensando — diz Flavinha. — Não queria que a gente brigasse por isso. Que tal se só dividíssimos a multa? Afinal das contas, você também já pirateou umas coisas, Silvia. — Bárbara não tenta esconder seu sorriso satisfeito ao ouvir isso. — Acho que qualquer uma poderia ser culpada.

— Ah, Flávia, não vai dar não — responde Luluzinha ao fechar a geladeira sem ter pego nada. — Vocês sabem que estou procurando emprego feito uma doida. Mesmo dividindo, não consigo pagar essa multa.

— Dividindo entre as quatro, fica uns 200 — suspira Silvia. — Não é tanto assim.

— Mas eu não consigo.

— Então dividimos só nós três — sugere Flavinha.

— Peraí... — Fala Bárbara naquele jeitinho dócil de sempre. — Aí não é muito justo, né? O aluguel aumentou mês passado, o que a gente gasta no mercado também...

Luluzinha fuzila Bárbara com o olhar, o que esta finge não perceber.

— Eu teria que pedir dinheiro emprestado dos meus pais — diz Luluzinha após alguns momentos de silêncio. — Vocês sabem que não dou bem com eles — olha para Flavinha, seu olhar pedindo por piedade.

Bárbara não responde, mas seu rosto deixa claro que não está particularmente preocupada com o drama familiar de Luluzinha.

— Mas não é só o dinheiro, né — fala Silvia. — E se outra multa aparecer daqui a um mês? Como podemos confiar que isso só vai acontecer dessa vez?

— O que você quer que eu faça? — pergunta Flavinha, sentindo a angústia tomar conta do seu corpo de novo.

— Não estou falando pra você fazer nada — reclama Silvia, fazendo "tsc" com a boca. — Só estou comentando.

— Eu não posso forçar ninguém a falar a verdade!

— E quem te encarregou disso? Você está toda nervosa aí porque quer.

— Não precisa falar assim com ela, Silvia— interrompe Bárbara. — Ela só está tentando ajudar.

— É, claro que você diria isso.

Isso faz Bárbara pausar, olhando para Silvia com olhos arregalados, seu rosto levemente rosado.

— Não entendi.

— Será que não entendeu mesmo?

— Gente, por favor — suspira Flavinha. — Olha, eu acho justo a gente dividir em três. Se não fosse pelos pais da Luluzinha, nem estaríamos aqui.

— Obrigada! — responde Luluzinha com um olhar exasperado.

— Quantas vezes isso vai ser jogado na nossa cara? — resmunga Silvia. — Porque foi assim que acabei dividindo a conta do veterinário da Estrela.

— Bem lembrado — concorda Bárbara, o que surpreende tanto Silvia quanto Flavinha. — Eu também ajudei com a conta da Estrela e isso que ninguém aqui tinha nada a ver com ela ter comido uma bola de gude do seu priminho.

— Isso não tem nada a ver!

— Claro que tem. Nós sempre te ajudamos quando você precisou. — Acrescenta Silvia.

— Dois contra um é covardia — Luluzinha aumenta o tom de voz.

— Ai, Silvia, você não está ajudando — implora Flavinha, sentindo-se cada vez mais angustiada.

— Em três eu não divido. Me desculpa. — Diz Bárbara sem olhar para o rosto de ninguém.

— Eu também não.

— Eu pago a sua parte, Luluzinha — Flavinha estende os braços para pegar nas mãos de Luluzinha, mas acaba não terminando o gesto.

— E você vai pagar isso como? — ri Silvia com escárnio. — Só esse valor seria mais de 15% do seu salário.

Bárbara pensa, de modo meio distraído, que Silvia é boa de matemática.

— Paga pra mim, então, Silvia. Por favor. — Quando sua única resposta é silêncio, continua falando. — Eu te pago próximo mês.

— Já gastei toda minha grana esse mês. — É a resposta não muito convincente.

— E a saidinha pro bar ontem, hein? Pagou como por isso?

— A... Quer dizer, meus amigos me ajudaram a pagar.

— Amigos. Que amigos?

— O Pedro.

— Foi ele que te deixou em casa? — interrompe Bárbara. — Vi um Fusca bem bonito ontem na porta.

De inocente, essa aí só tem o rosto, pensa Silvia com raiva.

— Fusca? — Flavinha passa as mãos pelo cabelo encaracolado. — Você não falou que tinha voltado de metrô?

Silvia fecha os olhos e encosta a cabeça na parede.

— A Carol me deu carona. Mas sei que você não gosta dela, então não quis...

— Você mentiu pra mim — Flavinha pisca diversas vezes. Parecia prestes a chorar. — Não ia ter feito isso se não tivesse motivo.

— Acabei de te dizer o motivo.

Luluzinha pensa em falar algo para terminar a briga das duas amigas, mas acaba decidindo ficar quieta. Afinal das contas, se parassem de discutir, voltariam a falar sobre a multa.

Ela olha de soslaio para Bárbara, que está observando a briga em silêncio enquanto rói as unhas.

— Olha, vamos voltar a falar sobre a multa. — Por fim fala Silvia.

— O que mais posso dizer? Você não quer pagar a parte da Luluzinha. Eu não posso, você está certa. Bá...?

Bárbara só faz que não com a cabeça, com um dedão na boca.

— Eu mando dinheiro pra minha mãe todo mês — responde olhando para Luluzinha. — Ela não consegue se sustentar sem mim.

— Você nunca tinha falado disso antes — reclama Luluzinha.

— Não sou de falar da minha vida pessoal pra qualquer um — a resposta faz Luluzinha cerrar os olhos.

— Isso é algum tipo de indireta? Só porque meus pais alugaram a casa pra mim?

— Não era pra ser.

— Eu estou longe de ser rica.

— Tá bom.

— Gente, acho melhor continuarmos essa discussão só amanhã. Que tal? — tenta Flavinha.

— Qual a diferença? Eu, você e a Luluzinha vamos continuar sem dinheiro. A mãe da Bárbara vai continuar pobre também.

Flavinha fica com pena de Bárbara ao ver sua expressão aborrecida.

— Desnecessário esse comentário, Silvia — ela defende a amiga.

— Eu tava só brincando.

— Tudo bem — diz Bárbara.

— Não, claramente não está tudo bem. Você tem que pensar antes de falar, Silvia.

— Ah, pronto. Agora vai defender a Bárbara só porque ela fica atrás de você feito um cachorrinho apaixonado.

— Não fico! — Bárbara levanta a voz, o que faz todas pausarem.

— Acha que não percebo? Você faz tudo o que a Flávia quer. Concorda com tudo que ela diz. Quando a gente se conheceu pela primeira vez e você me viu dando um beijo nela, o brilhinho desses seus olhos de coitada desapareceu na hora.

Bárbara funga, piscando diversas vezes.

— Quer saber de uma coisa? Não vou pagar porcaria de multa nenhuma. E nem vou continuar nessa merda de lugar.

— Bárbara, espera! — Flavinha tenta ir atrás da garota enquanto ela bate o pé até seu quarto, mas Silvia a impede.

— Deixa ela. Uma hora ela ia ter que acordar.

— Pegou pesado — Luluzinha abre a boca depois de um bom tempo quieta.

Silvia só vira os olhos.

— E agora? O que a gente vai fazer?

— Eu não vou fazer nada — responde Silvia. — Em algo concordo com aquela pobre coitada: eu não tenho nada a ver com essa multa.

— Não fala assim dela.

— Falo como eu quiser.

A discussão entre as duas continuou por uma hora. Depois, duas. Depois, um dia.

Eventualmente, passou de dias. Bárbara saiu da casa e voltou a morar com a mãe sem ajudar com a multa. A discussão entre Flavinha e Silvia se intensificou a tal ponto que as duas amigas/ficantes/ponto de interrogação acabaram terminando. Luluzinha, teimosa, não falou com os pais, que até hoje não sabem da dívida.

E as quatro meninas nunca mais se falaram, sua casa dividida por conta de um simples torrent.